sábado, 6 de junho de 2020

A ferida aberta vem da infância



Pra ilustrar melhor resolvi contar um pouco dessa minha saga. Sim, porque me lembrei que meu objetivo é contar minha história e não ser um livro de auto ajuda. 

Dizem que a codependencia tem origem na nossa infância. Então vou contar um pouco do que eu conto nas minhas sessões de terapia. 

A romantização das migalhas.

Era uma vez uma menina apaixonada pelo seu pai. Um amor enorme, sem explicação, que só mesmo o vínculo sanguíneo poderia explicar. Mas esse pai, era um pai um tanto ausente. Nós não o víamos com tanta frequência como víamos minha mãe. Ele trabalhava fora, fazia "plantões", as vezes trabalhava a noite e finais de semana quando não estava em casa nos pedindo para fazer algo como cortar grama, limpar as grades, estava fazendo churrasco, ou vendo corrida de fórmula 1. Todos os dias ele vinha almoçar em casa. Mas era um pai silencioso. Quando falava certamente era pra "educar". Coloquei entre aspas por que tenho certeza que ele realmente acreditava que estava nos educando , mas na verdade recebíamos só como um momento de tensão, com palavras duras, sempre criticando, e essas palavras nos feriam muito. E infelizmente projetou algumas crenças limitantes em nós. Quando falo nós, estou me referindo a mim, ao meu irmão e minha mãe. 
Mas eu era essa menina apaixonada. Sempre achei meu pai muito inteligente. Eu me parecia com ele fisicamente. Ele me pedia pra coçar a cabeça dele depois do jantar, e ele fazia cara de que gostava muito. Eu me sentia muito importante. Depois mais crescida, em alguns momentos que podíamos conversar, sempre durante as refeições, percebi que eu tinha o poder de debater as idéias dele. Era mágico ver meu pai escutando o que eu tinha a dizer. Na verdade eu não sei se ele escutava mesmo, ou só gostava de provocar pra ver minha reação. Mais tarde ele quis que eu fosse advogada, pois ele achava que eu falava bem. Então concluí que ele devia me escutar mesmo. Mesmo não concordando e debatendo comigo. Agente falava em voz alta, era emocionante. Mas só pra mim e pra ele. Por que minha mãe e irmão sempre viram isso como discussão. Minha mãe odeia que a gente fale alto. 
Bom, além dessas coisas tinham outras que eu sempre amei no meu pai. Eu sempre amei a temperatura corporal dele. Ele tinha mãos muito quentes e essas mãos faziam passar qualquer dor. Eu também gostava muito de abraçar ele, mas ele nem sempre nos abraçava. No máximo levantava um dos braços e colocava a mão sobre nossas costas. Ele tinha um jeito durão de falar, uma pose que se fazia respeitar em qualquer lugar. Então me dava a sensação que ele podia resolver qualquer problema. E mais uma coisa! Nós , só nós dois, fazíamos contas de um jeito que só a gente entendia! Uma lógica totalmente inversa. E me divertia muito em ver como eu era parecida com meu pai. 
Bem, deu pra ver o quanto eu romantizava essa relação. Fato é que toda vez que ele pegava aquela garrafa de conhaque e se servia misturando com mel, a gente já sabia que alguém ia sair chorando da mesa. 
E muitas vezes eu ia atrás dele. Ele se sentava numa sala ao lado, no escuro. As vezes colocava uma música, e eu sentava no sofá da frente.  Ficava ali olhando ele. Esperando alguma brecha pra conversar. As vezes eu falava, mas não sei se ele me escutava. Mas eu me sentia importante e amada daquela forma. Éramos cúmplices. 

Eu cresci. E de alguma forma, assistir novelas e filmes na tv me fez por um lado romantizar a vida e por outro ver coisas demais. 
Eu já era pré-adolescente. Meu pai sempre quando chegava as férias de verão nos deixava na casa de praia do meu avó e voltava pra cidade pra trabalhar. A gente passava as férias com meu avô paterno, minha mãe, e as vezes com meus primos e tia. 
Numa dessas voltas pra casa eu achei um batom na área de serviço e entreguei pra minha mãe.  Pouco tempo depois encontrei grampos de cabelo com cabelos compridos no banco de trás do carro, e também entreguei pra minha mãe. Minha mãe sempre usou cabelo curto. Nessa época meus pai brigavam bastante e eu e meu irmão sentávamos na escada pra ouvir a discussão. 
Em uma noite, em que minha tia paterna estava em casa, tocou o telefone e eu atendi. Era um homem, que perguntou se era a casa do Paulo. E eu disse que sim. Pediu então pra falar com minha mãe. Era o marido da amante do meu pai. Meu pai não estava em casa, pra variar. 
Naquela noite minha mãe chorou, minha tia tentou acalma-la mas só o que ouvi foi que minha mãe tinha que tomar alguma providencia. 
E minha mãe tomou. Naquele dia minha mãe foi dormir no meu quarto. Ela pegou uma parte do estrado da cama que eles tinham e colocou ao lado da minha cama. Dei a mão pra ela. Ela chorava. Não falamos mais nada. 
Minha mãe queria se separar mas demorou pro meu pai sair de casa. Ele se mudou pra um quarto no andar de baixo e só saiu de lá quando o oficial de justiça fez ele sair. 
Eles se separaram, eu tinha 13 anos. 
Acho importante colocar mais algumas coisas: 
Nós morávamos em um sobrado reformado enorme, com um carro grande na garagem, um barco também. Mas minha mãe e meu pai não tinham cama, tinham um estrado apoiado nuns tijolos de cimento. Os móveis da minha casa estavam caindo aos pedaços, os poucos que tinham. A cozinha tinha sido feita e também um armário no meu quarto. O resto era tudo improvisado. Minha mãe costurava e reformava minhas roupas e do meu irmão. Ela também costurava as roupas dela. Enquanto meu pai , se vestia bem, jaqueta de couro, andava em um carrão e viajava em excursões para pescar, em São Paulo, Pantanal e nem sei mais por onde. Estou contando tudo isso por que hoje vejo que meu pai se comportava como uma pessoa tóxica, ou um dependente químico. Hoje acredito que meu pai seja realmente um dependente químico. Mas eu perdi o contato e convívio com ele, por isso não posso afirmar. Mas ele, sempre procurou ter o melhor pra si, e nós, nos virávamos com as migalhas. 

Eu persegui essas migalhas por muito tempo, em busca do amor do meu pai. Sentia pena dele. Quando chegava a quinzena do fim de semana pra ir visitá-lo, eu fazia questão de ir. Convencia meu irmão, que nunca queria ir, a ir também. Meu pai sempre com uma namorada nova. Me lembro da primeira vez que ele serviu a namorada com um pedaço do churrasco que ele sempre guardava pra mim. Nós tínhamos um quarto pra cada um na casa dele, com tv e computador. Mas nossos quartos eram no andar de cima. O dele era em baixo e a porta estava sempre fechada com ele e a namorada dentro, e nós pra fora. Depois de um tempo naturalmente eu e meu irmão não queríamos mais ir. E ele sempre nos jogou na cara que nós o abandonamos. Tirem suas próprias conclusões. 

Hoje eu não tenho mais contato com meu pai, já fazem mais de 5 anos. A última vez que falei com ele foi quando minha vó paterna faleceu. Nessa época ele já me evitava. Quando eu ia na casa da minha avó, ele nunca estava. Um dia escutei minha avó no telefone, era ele perguntando se eu já tinha ido embora. 
Um dia depois que minha vó morreu eu liguei pra ele. Pra saber como ele estava. Nesse dia ele disse abertamente pra mim não procurá-lo mais, que ele não queria mais ser meu pai, que era pra eu fingir que ele estava viajando. Foi a pior dor que já senti na minha vida. Eu senti o luto por alguém vivo. Eu senti como se meu pai tivesse morrido, mesmo sabendo que ele estava vivo. 
Segue o que escrevi na época:
O PAI QUE NÃO QUERIA SER  PAI

E começaremos pelo fim. Quando finalmente ele assume e diz: “Me deixa em paz, vai viver a sua vida! Tá bom assim...”  E a filha ainda se preocupa:" Mas pai eu te amo! Sinto saudades!  "
- “Então finja q viajei...”
E a conversa acaba com um "Vá, vá, vá..." e um telefone desligado na cara...
Fato é que quando erámos bebês, talvez esse pai gostou de ser pai desses bebês. Mas esqueceu que amor é afeto natural dos filhos pra um pai que deve ser regado e cultivado. Esse pai cresceu ausente. Com uma cadeira virada de lado. Cadeira comprada especialmente para na hora da janta ter essa característica. A de se isolar. Enquanto mãe e filhos conversavam e riam, pai se virava e preparava sua dose de conhaque com mel. E junto dela já sabíamos que viriam os berros. " Depois de muito riso vem o choro" ou seria depois de muito álcool vem a agressividade? Pronto, tinha feito seu papel de pai. Palavras duras pra cá. Como você não presta pra lá. E cada um pro seu quarto chorar. E o tempo passou. Dentro da casa enorme de 4 quartos, 3 banheiros, 3 salas, móveis velhos caindo aos pedaços, tênis apertados e roupas curtas, mas na garagem um barco e a caminhonete imponente. " Já aprendeu a assobiar? Por que é o que vai ter que saber pra ser lixeiro! Burro do jeito que é... "
Eu escondia meu boletim, por que minha paixão por estudar fazia minhas notas serem azuis, mas não queria adiantar esse episódio pro meu irmão, que era aluno regular, e por vezes tinha notas abaixo da média. Hoje formado na sua área, é profissional de destaque,  e chefia uma grande equipe em sua área. Você estava errado pai! E além de assobiar, ele é multi-instrumentista, um dos melhores q já vi!
O tempo passava.Nas férias ele nunca estava, viagem pra pesca:  Pantanal, Mato Grosso, Goiás. Me pergunte o mais longe q fui? Você vai rir...
Um grampo de cabelos com fios loiros e compridos, no banco da caminhonete entrego pra minha mãe, que tem cabelo curto. Acho que ele nunca soube que fui eu. Um batom vermelho na lavanderia de casa, entrego pra mãe, não sei se sabe que fui eu. O telefonema do marido da amante: "Alô? Mãe é pra você" .  É o começo do fim.
A gente sempre escutava :"Eu nunca quis ter família" "Eu não sirvo pra ter família". Ficamos com minha mãe. Podíamos escolher. Eu tinha 13 anos.
Visitas pro meu pai: quarto fechado, namorada lá dentro, passei o fim de semana vendo tv. Podia estar em casa com meus amigos... Meu irmão aos poucos não quer mais ir. Eu continuo indo.  Quero ter um pai. Já tenho 18 anos. Ele mora na casa de uma namorada bem de vida...  “Pai posso fazer uma tatuagem? Uma flor no braço?” Autorizada, fiz.
Tempo passou. Passei na faculdade, depois de fazer o curso de moda, que ele achava que não servia pra nada, passei em licenciatura em artes, em terceiro lugar, faculdade pública! Não em direito como ele queria.
Engravidei, um amor que deu errado, me deu uma filha linda! E ele tentou ser avô. Era tarde.  Acho que minha filha sentiu a rejeição que ele teve por mim enquanto eu estava grávida, e as asneiras que ele me disse quando eu contei que estava. Ficou sem falar comigo até minha filha nascer. Depois a aproximação foi difícil.
Passamos tempos bons, tenho saudades. Ele se aposentou, disse que poderia se aposentar melhor se não tivesse que ter  a pago as pensões e plano de saúde pra mim e pro meu irmão. Passei em concurso público, como ele queria, três empregos, stress, problemas emocionais, avô materno com Alzheimer, eu sozinha de tudo, adoeci! Depressão, pânico, bipolaridade, internada. Eele ia me visitar, me surpreendeu! Achei q íamos ter uma chance. Recebi alta , ele sumiu. Fui atrás dos meus sonhos: fiz um curso de tatuadora, virei tatuadora, fiz mais tatuagens. Comprei meu apartamento e ele resolve me ajudar a me dar o piso, mas ai certo dia ele faz uma conta de Facebook, me adiciona, acho legal, 10 minutos depois o inferno está instalado. Ele começa a comentar pejorativamente e responder ofensivamente meus amigos. Manda mensagem privadas ameaçando um deles, que me procura. Entro em contato por telefone com meu pai. Ele estava bêbado. Me xinga e desliga o telefone na minha cara. No outro dia manda recado pelo meu irmão para suspender o pagamento do piso. 3 anos quase sem falar comigo, ignorando meus contatos, minhas mensagens, saindo de casa quando eu ia visitá-lo pra não me encontrar. E essa semana resolve assumir que desistiu de ser pai. Pensando bem acho mais honesto. Acho que finalmente teve coragem de assumir algo que talvez nunca tenha desejado. Acho que tentou algumas vezes. E eu sinto muito de verdade por este sentimento não ser assim tão natural pra você como é pra mim . Hoje eu estou vivendo um luto em vida. Por que aqui, eu tive usar dessas palavras pra me ajudar a entender o que esta acontecendo. Mas meu amor por você nunca vai morrer. Minhas lembranças do pai que cortava a melhor fatia de carne do churrasco pra mim , da menininha que ficava sentada na sala junto com você no escuro escutando música a noite, do beijo antes de dormir, do calor da sua mão que cura, do seu jeito durão que me salvou no hospital mandando os médicos fazerem os exames corretos, o seu sorriso, e o nosso jeito particular de fazer contas, o cafuné que eu fazia na sua cabeça...e muitas, muitas outras coisas q só eu sei.
Não há desculpa que você use, seja minha religião, minhas tatuagens, ou qualquer das minhas escolhas que justifiquem o que você escolheu. Sua escolha, é sua escolha. Por que eu não te fiz nada. Sempre e sempre só te amei. Mas sempre e sempre foi tão difícil chegar perto de você.


Meu pai nunca seguiu nenhuma religião. A primeira tatuagem que eu fiz ele autorizou, e eu já tinha 20 anos. Me tornei tatuadora com 27 anos, e nessa altura do campeonato eu já era uma mulher de 30 anos, com uma filha e carreira bem estabelecida. Ou seja, essas justificativas eram furadas. Ele simplesmente assumiu que não queria ser pai.
Meu pai é uma cara difícil. Não fala mais com ninguém da família dele. Ele se isolou do mundo. Vive com a namorada. Tomando suas doses de vodka.  Já tentei mais de uma vez me reaproximar, mas só recebi insultos. Decidi então que a forma que eu tenho de amá-lo é respeitando as escolhas dele. 

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